quinta-feira, janeiro 25, 2007

Observações sobre o trânsito

É intrigante como há tão poucas batidas de carro no trânsito da cidade, ou pelo menos assim me parece. Cada pessoa controla apenas um veículo, e os meios de comunicação entre os veículos às vezes são insuficientes para expressar os planos de um motorista. Tanta gente dirigindo dá a impressão de que trata-se de uma tarefa fácil. Não é.

Existem várias situações em que as coisas poderiam sair errado. Felizmente a natureza probabilística dos eventos faz com que, na média, o trânsito siga seu fluxo. Em toda a sua vida, um motorista médio toma sustos e vivencia situações de quase-batida, mas nunca bate o carro. Há os motoristas ruins. Estes só não batem porque os veículos atrás prestam mais atenção nele e os da frente continuam sua trajetória previsível. Quando isso não acontece, eles podem contar com os freios do carro, que em geral são muito bons. Há também os motoristas experientes, que mudam de faixa quando querem e controlam o movimento dos carros ao seu redor. Não sei qual é o perfil do motorista que provoca batidas, mas me causa espanto que essa diversidade de motoristas funcione tão bem. Meu melhor palpite é que, para cada motorista imprudente, há vários que o compensam e evitam o acidente.

Uma coisa que eu acho bastante interessante no trânsito é a sinalização. O trânsito está cheio de situações que exigem decisões de cada motorista, e às vezes a melhor maneira de chegar a um consenso é pela imposição. Serve pra evitar situações potencialmente perigosas. Os semáforos têm utilidade óbvia, mas também as faixas pintadas no asfalto são muito importantes. Quando elas não estão lá, os carros precisam andar mais lentamente para negociarem o espaço.

E como eu acho interessante a sinalização! Os responsáveis por ela têm uma grande responsabilidade, pois afetam diretamente a vida de muita gente. Ao mesmo tempo, um pequeno ajuste nas durações de um semáforo pode ser a diferença entre o engarrafamento e um fluxo normal nos horários de pico. Como será a tarefa de planejar as vias e a sinalização? Será que os responsáveis por isso são pessoas inteligentes com programas de computador que utilizam modelos de simulação avançados e podem determinar com boa chance de acerto o impacto de uma mudança na sinalização? Ou trabalham de forma experimental, na tentativa e erro, tendo como laboratório a cidade?

O que estudam as pessoas que planejam o tráfego? As questões de trânsito me lembram muito sistemas distribuídos, estatística, sistemas multi-agentes, protocolos de comunicação e até a teoria do caos. Acabei de fazer uma busca na internet e vi que há uma disciplina Engenharia de Tráfego do curso de Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UnB. A página da disciplina conta com como apostilas sobre Teoria do Fluxo de Tráfego e Análise de Capacidade de Intersecções em Nível. Muito interessante.

Aqui em Salvador há um lugar no bairro do Rio Vermelho em que a pista começa com 3 faixas, depois vai pra 2 faixas e finalmente 1 faixa em menos de 200 metros segundo minha estimativa. O que acontece na prática é que, em um primeiro momento, os carros das duas faixas mais à esquerda se juntam na faixa da esquerda e então usa-se a regra do zíper (mais sobre isso depois) para compactar tudo em uma faixa. Fico pensando se não seria melhor ter uma só faixa o tempo todo (claro, há que se considerar os pontos deônibus, minha idéia é só um esboço).

Uma decisão polêmica aqui em Salvador foi a criação das faixas exclusivas para ônibus. A idéia é que os outros veículos não podem permanecer muito tempo nessas faixas, sob pena de multa. Uma das primeiras reações que eu ouvi foi: "isso é jogo político para prejudicar o trânsito da cidade e justificar novas verbas, que, em último caso, serão usadas pela corrupção". Em um primeiro momento eu apenas fiquei curioso, sem entender o porquê dessa faixa que, a meu ver, não fazia muita diferença -- melhora um pouquinho para osônibus e piora um pouquinho para os outros veículos. Até o dia em que, dentro de um carro e preso em um engarrafamento, vi um ônibus trafegar livremente em sua faixa exclusiva. Então essa é minha explicação: a faixa serve para os passageiros de ônibus chegarem mais rapidamente em casa na volta do trabalho. Louvável, na minha opinião.

Uma alteração um pouco mais antiga foi a troca de diversos semáforos por rótulas em cruzamentos perto de onde moro. Como em toda mudança polêmica e criticada, há uma explicação popular: "a prefeitura quer economizar em manutenção semafórica". Eu gostei logo de cara. Antes, mal saía da garagem e me deparava com um sinal vermelho, enquanto na rua transversal havia pouco movimento. O sinal vermelho demorava, pois a minha rua não é a principal. Agora, consigo entrar na rua transversal rapidamente em 80% dos casos e espero um tempo aceitável nos outros 20%. Há um horário bem específico em que a rua fica congestionada, mas eu raramente saio nesse horário.

Minha primeira impressão quando trocaram os semáforos por uma rótula foi: "que ousado e inovador! Aposto que funciona!". De fato, depois li em uma revista que remover sinalização é algo que está sendo feito em outras cidades de fora do Brasil, com resultados positivos. Adoro soluções contrassensuais. Uma vantagem extra da remoção de semáforos é evitar mendigagem e assaltos.

Dentro do universo de situações do trânsito que exigem a decisão e coordenação das atitudes dos veículos, há aquelas sobre as quais nada dizem as regras de trânsito ou a sinalização na rua. Para estas a decisão cabe apenas aos motoristas. Obviamente, não se pode saber o que se passa na cabeça de cada outro motorista, mas pode-se dizer que certos princípios e regras implícitas regem a movimentação dos veículos.

De acordo com minha observação, o que rege a movimento dos carros e é base de todas as regras implícitas é o princípio do menor tempo: "Dentre todas asmaneiras de se mover de um ponto a outro com o carro, é preferida aquela que resulta no menor tempo". Aqui consideramos dois pontos relativamente próximos, de modo a ignorar questões sobre o caminho usado para sair de um ponto e chegar a outro. Esse princípio explica, por exemplo, o fato de os motoristas acelerarem pra passar no semáforo prestes a fechar. A justificativa é que o trânsito é, para a maioria das pessoas, um meio de chegar a algum lugar, e não um fim em si. Há, claro, um outro princípio óbvio, que é o de evitar acidentes.

A partir dos princípios é possível derivar algumas regras. A primeira é a regra do zíper, que se aplica no caso de uma pista com duas faixas. Quando uma das faixas some, os carros que estavam na faixa desaparecida precisam se deslocar para a faixa que restou. A regra do zíper diz que, nessa transição, passam alternadamente carros de uma faixa e de outra. O motorista da faixa que se mantém pensa: "já deixei passar um, agora é minha vez".

Outra regra é a inércia, como na primeira lei de Newton. Quando dois carros disputam um espaço -- em um cruzamento, por exemplo --, ganha aquele que estiver com a maior velocidade. Isso, é claro, no caso de a diferença de velocidade ser grande, ou quando um dos carros está quase parado. Essa regra tem prioridade até sobre as regras de preferência do código de trânsito -- das quais ninguém se lembra direito.

O instinto de evitar acidentes faz com que os motoristas evitem participar de sanduíches, situações em que ele fica entre dois carros, lateralmente, especialmente em curvas. Para evitar essa situação costuma ser suficiente acelerar ou frear um pouco.

Muito interessante ainda é o que acontece em cruzamentos sem semáforos em vias de baixa velocidade. O motorista deve aproximar-se lentamente do cruzamento e, se estiver livre, passar. Eventualmente haverá um carro disputando o cruzamento na outra via. A regra da inércia pode ser suficiente em muitos casos para determinar a precedência dos carros, mas às vezes os dois carros param e temos umimpasse . Nesse caso é comum um dos motoristas fazer gestos indicando que deixará o outro passar. Mas pode acontecer de os dois o fazerem, ou nenhum. Nesse caso uma solução interessante, que é usada na prática, é que cada motorista espera um tempo aleatório antes de tentar de novo, acelerando. Então a diferença de velocidade pode se tornar suficiente para aplicar a regra da inércia. Caso contrário, volta-se ao ponto de partida. Esse protocolo de comunicação entre os motoristas é de fato bastante parecido com diversos protocolos de rede, como o CSMA/CD, exceto pela parte dos gestos.

Antes de tirar minha carteira, li em algum manual de direção defensiva na internet que, quando nos vemos diante de situações no trânsito, é melhor tomar prontamente qualquer decisão do que ficar na dúvida e acabar tendo que tomar a única atitude que sobrar, por vezes perigosa. O sinal ficou amarelo? Acelere para passar ou freie logo, não importa, mas faça logo. Se ficar na dúvida, o motorista pode acabar passando no vermelho ou então provocar uma batida no fundo do carro.

Já ouvi reclamações do tipo: "basta eu ligar a seta que o carro da outra faixa acelera pra não me deixar passar". Solução: mudar de faixa sem sinalizar? Não! Quando um motorista sinaliza que vai mudar de faixa, o carro da outra faixa tem o poder de decidir se o motorista vai ou não mudar de faixa. E, nesse caso como no caso do semáforo, ele pode acelerar ou não. Essa decisão é muitas vezes apoiada na regra da inércia.

Existe comunicação além da sinalização explícita. A velocidade e a aceleração dos carros são exemplos, como visto na regra da inércia. Outro exemplo é o deslocamento lateral. Alguns motoristas simplesmente não sinalizam a intenção de mudar de faixa, mas os outros motoristas podem perceber suas intenções apenas observando o movimento do carro. O carro se desloca um pouco para o lado, chegando ao limite de sua faixa, talvez sem o próprio motorista perceber.

Isso resume a minha visão sobre o trânsito, um verdadeiro laboratório de psicologia e comunicação. As pessoas precisam tomar decisões o tempo todo, e por isso o comportamento delas é explícito. Como você encara situações de risco? O que faz quando é prejudicado? Xinga, confronta? Em situações envolvendo um outro motorista, suas decisões são influenciadas por percepções subjetivas sobre o comportamento dele? Você tenta fazer justiça com as próprias mãos no trânsito, criando situações de risco? Suas decisões são influenciadas pela marca do carro do outro motorista? Em situações do tipo permitir/avançar, qual predomina? Qual é sua relação com os pedestres? São muitas questões, dariam outro texto. E a comunicação no trânsito é interessantíssima. Predominantemente comunicação não-verbal. O mais espetacular é que funciona. E com poucas batidas.

3 comentários:

Denise Vaz disse...

Seus textos são sempre muito bons! Mas esse tá d+!! Amei amei amei!
Parabéns pela escrita e pelo senso crítico! :D
Beijão!

Anne Caroline disse...

U-A-U!! Que texto legal. Dei uma olhada no tamanho, me assustou um pouco, mas quando vi o título e quando vi que Rodrigo tinha escrito, decidi começar a ler..

Gostei muito do que você escreveu, que inspiração massa, que leitura agradável. Adorei!

Com relação ao meu sentimento quando algum motorista realiza alguma imprudência, eu digo: "Oxe! Que peba, ele não tá vendo não é?" Essa é a minha forma de expressar a indignação. Mas, com relação à marca do carro, para mim tem grande influência nas minhas decisões. Por exemplo, na ladeira da Prata se tem um carro grande ou mais potente atrás de mim e eu estiver na faixa da esquerda, eu mudo logo de faixa. hehe

Bruno Coitinho disse...

Gostei da observação sobre o "CSMA/CD". É interessante como vários algoritmos ou idéias da computação são copiadas da vida real mesmo. Isso mostra como somos eficientes (nem preciso falar de AG nem RNAs hehehe).

Sobre o trânsito em si, teve vários momentos empolgantes no texto. Talvez vc pudesse fazer uma referência com a bolsa de valores, em vez de fazer com a computação. Isso de "lei da inércia" talvez se relacione com a lei de "não quero perder dinheiro!" que existe com os cumes e abismos das ações. Em ambos os casos, o medo nos rege um pouco, não acha?

Gostei do texto, Rodrigo!